Tradução do primeiro capítulo do livro Violin Mastery (1919), de Frederick H. Martens, livremente adaptada para este formato por Bruna Caroline de Souza Berbert.

Quem dentre os mestres contemporâneos do violino consegue superar o grande artista belga [Eugène Ysaÿe] e suas “extraordinárias habilidades emotivas como intérprete”, aprimoradas por inúmeros talentos técnicos e sonoros frequentemente referenciados por seus colegas admiradores? Ysaÿe é o maior expoente da maravilhosa Escola [Franco-]Belga de violino, cujas raízes estão em seus professores Vieuxtemps e Wieniawski, e que “reinou durante um período de setenta anos com supremacia no Conservatório de Paris, nas pessoas de Massart, Remi, Marsick e outros de seus grandes intérpretes”, como ele mesmo afirma.

O que mais impressiona quem conhece Ysaÿe e conversa com ele pela primeira vez é a sua visão e mente aberta; sua bondade e amabilidade; sua total falta de qualquer vaidade. Quando o escritor o convidou pela primeira vez em Nova York com uma carta de apresentação de seu amigo e admirador Adolfo Betti, e mais tarde em Scarsdale, onde, em companhia de seu amigo Thibaud, ele dividia seu tempo entre música e tênis, Ysaÿe o fez sentir-se inteiramente em casa, e de bom grado falou sobre sua arte e seus ideais. Em resposta a algumas perguntas acerca dos seus anos de estudo, ele disse:

“É estranho dizer que meu pai foi meu primeiro professor – isso não acontece com muita frequência. Estudei com ele até ir ao Conservatório de Liège em 1867, onde ganhei um prêmio de segundo lugar, compartilhando-o com Ovide Musin, por tocar o Concerto nº 22 de Viotti. Depois tive aulas com Wieniawski em Bruxelas e estudei por dois anos com Vieuxtemps em Paris. Vieuxtemps já estava paralítico quando cheguei até ele; ainda assim, era um professor maravilhoso, embora não pudesse mais tocar. E eu já era um solista quando o conheci. Ele era um grande homem, que tinha a magnificência de uma tradição situada em toda uma “escola romântica” de se tocar violino. Veja seus sete concertos – é claro que eles foram escritos com um objetivo de efeito, do ponto de vista do virtuose, mas quão firme e solidamente eles foram construídos! Quão interessante é o seu trabalho – e a parte da orquestra é muito mais do que um mero acompanhamento. No que se refere ao efeito virtuosístico, apenas a música de Paganini se compara à dele, e Paganini, é claro, não tocou [suas próprias obras] como elas são tocadas atualmente. Em termos de riqueza de desenvolvimento técnico e de verdadeira expressividade musical, Vieuxtemps é um mestre. Uma prova disto é o fato de que suas obras duraram por quarenta a cinquenta anos, uma vida longa para [novas] composições.

“Joachim, Léonard, Sivori, Wieniawski – todos admiravam Vieuxtemps. Nas obras de Paganini e de Locatelli, o efeito (comparativamente falando) reside na mecânica; mas Vieuxtemps é o grande artista que fez o instrumento seguir o caminho do romantismo que Hugo, Balzac e Gauthier percorreram na literatura. E, antes de tudo, o violino foi feito para encantar, para mover, e Vieuxtemps sabia disso. Como Rubinstein, ele sustentava que o artista deve, antes de tudo, ter idéias, ter emoções – sua técnica deve ser tão elevada ao ponto de não precisar pensar nela! Aliás, por falar em escolas de violino, percebo que há uma grande tendência a se confundir a [escola] belga e a francesa, o que não deveria acontecer. Elas são distintas, embora esta última tenha sido indubitavelmente formada e influenciada pela primeira. De fato, muitos dos grandes nomes de violinos – Vieuxtemps, Léonard, Marsick, Remi, Parent, de Broux, Musin, Thomson – são todos belgas.”

O Repertório de Eugène Ysaÿe

Ysaÿe falou do repertório de Vieuxtemps – mas não o chamou assim: ele falou das composições de Vieuxtemps e do próprio Vieuxtemps. “Vieuxtemps escreveu em grande estilo; sua música é sempre rica e sonora. Se o violinista quer que seu violino realmente soe, ele deve tocar Vieuxtemps, assim como o violoncelista toca Servais. Sabe, na Igreja Católica, nas Vésperas, sempre que o nome de Deus é falado, inclinamos a cabeça. E Wieniawski sempre inclinava a cabeça quando dizia: “Vieuxtemps é o mestre de todos nós!”

“Eu sempre toquei o seu Quinto Concerto – tão caloroso, brilhante e repleto de temperamento, sempre ressonante, rico em uma força quase ilimitada. É claro que desde que Vieuxtemps escreveu seus concertos, uma grande variedade de belas obras modernas apareceu. A apreciação da música de câmara cresceu e se desenvolveu, e com ela a da sonata. E a sonata moderna para violino também é um veículo para o virtuosismo no melhor sentido da palavra. As sonatas de César Franck, d’Indy, Théodore Dubois, Lekeu, Vierne, Ropartz, Lazarri – todas são altamente expressivas e, ao mesmo tempo, virtuosísticas. As partes do violino desenvolvem uma linha melódica encantadora, mas as técnicas [exigidas] estão longe de ser simples. Tome como exemplo a esplêndida Sonata de Lekeu em Sol Maior, áspera e massiva, com uma grande demanda técnica – ela possui ainda um fôlego melódico maravilhoso e uma excelente qualidade expressiva de canção”.

Essas obras – aqueles que ouviram o Mestre tocar a bela sonata de Lazarri nesta temporada não esquecerão tão brevemente – são todas dedicados a Ysaÿe. E isso vale também para a sonata de César Franck. Como Ysaÿe diz: “As performances dessas grandes sonatas requerem dois artistas – pois suas partes de piano são eventualmente muito elaboradas. César Franck me enviou sua sonata no dia 26 de setembro de 1886, dia do meu casamento – foi o presente de casamento dele! Eu não posso reclamar quanto ao número de obras – obras realmente importantes – endereçadas a mim. Há tantas – de Chausson (sua sinfonia), Ropartz, Dubois (sua sonata – uma das melhores depois da de Franck), d’Indy (as Variações do Istar e outras obras), Gabriel Fauré (o quinteto), Debussy (o quarteto)! Há mais do que me lembro no momento – sonatas para violino, música sinfônica, música de câmara, obras corais, composições de todo tipo!

“Debussy, como você sabe, praticamente não escreveu nada originalmente para violino e piano – com exceção, talvez, de uma obra publicada por Durand durante sua última doença. No entanto, ele chegou bem perto de escrever algo para mim. Quinze anos atrás, ele me disse que estava compondo um ‘Noturno’ para mim. Eu saí em turnê e fiquei fora por muito tempo. Quando voltei para Paris, escrevi para Debussy para descobrir o que havia acontecido com o meu ‘Noturno’. E ele respondeu que, de alguma forma, o noturno havia se transformado em uma obra para orquestra em vez de um solo para violino. É um dos Trois Nocturnes para orquestra. Talvez uma razão pela qual tantas obras me tenham sido dedicadas seja o fato de que, como intérprete, eu nunca cultivei uma ‘especialidade’. Eu toquei de tudo, de Bach a Debussy, afinal, a verdadeira arte deve ser internacional!”

Ysaÿe tem um controle quase maravilhoso do braço direito e do espelho [do violino], que lhe permite produzir, à vontade, as mais finas e sutis nuances sonoras em toda sua condução de arco. Além disso, ele supera os problemas mecânicos mais complexos com uma aparentemente grande facilidade, sem esforço. E seu som tem sido chamado de “dourado”. Vale a pena registrarmos sua própria definição de sonoridade. Ele diz que deveria ser “na música, o que o coração sugere e a alma expressa!”

AS FERRAMENTAS PARA O DOMÍNIO DO VIOLINO

“No que diz respeito à técnica”, continuou Ysaÿe, ” as ferramentas de domínio do violino (de expressão, técnica, mecanismo) são muito mais necessárias atualmente do que no passado. Na verdade, elas são indispensáveis, caso o espírito deseja se expressar sem restrições. E quanto maior domínio técnico se tem, menos perceptível a técnica se torna. Tudo o que sugere esforço, embaraço, dificuldade, repele o ouvinte, que mais do que qualquer outra coisa se deleita com o som de um violino. Vieuxtemps costumava dizer: Pas de trait pour le trait – chantez, chantez! (“Não virtuosismo por puro virtuosismo – cante, cante!).

“Muitos dos [violinistas] técnicos da atualidade não cantam mais. Eles superam suas dificuldades de maneira mais ou menos satisfatória; mas o virtuosismo é muito aparente e, embora às vezes o ouvinte possa se surpreender, ele nunca se encanta. Dedos ágeis, seguros de si, e uma perfeita condução de arco são essenciais; e eles devem ser inegavelmente capazes de realizar o ritmo e a ação poética que o artista deseja. O mecanismo se torna mais acessível na mesma proporção em que seu domínio é enriquecido por novas fórmulas. O violinista dos dias de hoje domina muito mais recursos técnicos do que seus antecessores. Paganini é acessível a quase todos os músicos: Vieuxtemps não oferece mais as dificuldades que ele oferecia há trinta anos. Mas, ainda assim, os instrumentos de madeira, metais e até de cordas continuam a viver a herança transmitida pelos mestres do passado. Eu sinto que o ensino de violino de hoje se esforça para desenvolver o senso estético muito cedo, em um estágio prematuro. E dedicando-se à cabeça, esquecem-se as mãos, resultando em jovens soldados do exército violinístico cheios de ardor e coragem, porém mal equipados para a grande batalha da arte.

“Neste contexto, existe um excelente conjunto de Estudos-Caprichos de E. Chaumont, que oferece ao aluno avançado novos elementos e fórmulas de desenvolvimento. Embora em alguns deles ‘o quadro seja grande demais para a imagem’, e embora sejam difíceis de um ponto de vista do violinista, “eles ficam admiravelmente bem acima do pescoço”, para usar uma das expressões de Vieuxtemps – (eu gosto de chamar a atenção para elas).

“Quando eu disse que os instrumentos de corda, incluindo o violino, subsistem, em certa medida, a partir da herança transmitida pelos mestres do passado, falei com especial atenção à técnica. Desde Vieuxtemps, quase não há uma nova passagem escrita para o violino; e isso atrasou o desenvolvimento de sua técnica. No caso do piano, homens como Godowsky criaram uma nova técnica para seu instrumento, mas embora Saint-Saëns, Bruch, Lalo e outros tenham dotado o violino de músicas muito belas com suas obras, a música em si era sua primeira preocupação – e não música para o violino. Não há mais concertos escritos para solo de flauta, trombone, etc. – como resultado, não há material técnico novo adicionado aos recursos desses instrumentos.

“De certa forma, o mesmo vale para o violino – novas obras concebidas apenas do ponto de vista musical provocam a estagnação da descoberta técnica, da invenção de novas passagens e de novas combinações de riqueza harmônica. E um violinista deve explorar as muitas possibilidades de seu próprio instrumento. Tentei encontrar novas formas e meios técnicos de expressão em minhas próprias composições. Por exemplo, escrevi um Divertimento para violino e orquestra em que acredito ter incorporado novos pensamentos e ideias, e que tentou oferecer à técnica do violino um escopo mais amplo de vida e vigor.

“Nos dias de Viotti e Rode, as possibilidades harmônicas eram mais limitadas – eles tinham apenas poucos acordes e quase nenhum acorde de nona. Mas agora existe material harmônico para o desenvolvimento de uma nova técnica de violino: tenho alguns estudos para violino, que talvez eu publique um dia, dedicados a esse fim. Sempre sou um pouco hesitante quanto ao publicar – há muitas coisas que posso publicar, mas já vi tantas coisas banais, pobres e indignas que foram publicadas que me inclinei a desconfiar do valor de minhas próprias criações, para não cair no mesmo erro. Temos a escala de Debussy e seus sucessores, seus novos acordes e sucessões de quartas e quintas – novas fórmulas técnicas sempre evoluem a partir de ou logo após novas descobertas harmônicas (embora ainda não exista um método de violino que indique dedilhados para a escala de tons inteiros). Talvez tenhamos que esperar até que Kreisler ou eu escrevamos um que evidencie o novo florescimento da beleza técnica e desenvolvimento estético que ela traz ao violino.

“Quanto ao ensino de violino, eu nunca ensinei violino no sentido comum dessa frase. Mas em Godinne, onde costumava passar meus verões quando estava na Europa, eu oferecia uma espécie de curso tradicional sobre as obras de Vieuxtemps, Wieniawski e de outros mestres para cerca de quarenta ou cinquenta artistas-estudantes que se reuniam lá – o mesmo curso que eu desejo dar em Cincinnati, para uma classe de alunos muito avançados. Este foi e será um trabalho de amor, pois as composições de Vieuxtemps e Wieniawski são especialmente inspiradoras e, no entanto, geralmente são tão mal interpretadas – sem grandeza ou beleza, sem pensar na interpretação tradicional – que parecem peças de fábricas técnicas!

MAESTRIA DO VIOLINO

“Quando levo em consideração toda a história do violino, sinto que a verdadeira essência da “maestria do violino” [‘Violin Mastery’] é melhor expressa por uma espécie de grupo tríplice de grandes artistas. Primeiro, na ordem da expressão romântica, temos uma trindade formada por Corelli, Viotti e Vieuxtemps. Depois existe uma trindade de perfeição mecânica, composta por Locatelli, Tartini e Paganini ou – trazendo equivalentes mais modernos – César Thomson, Kubelik e Burmeister. E então, finalmente, o que eu poderia chamar de ordem de expressão lírica, um quarteto composto por Ysaÿe, Thibaud, Mischa Elman e Sametini de Chicago (este último, um artista maravilhosamente fino do tipo lírico ou cantabile). É claro que há qualificações a serem feitas. Locatelli não era um expoente da técnica. E muitos outros excelentes artistas, além dos mencionados, compartilham as características daqueles citados nos vários grupos. No entanto, falando de uma maneira geral, acredito que pode-se dizer que esses grupos resumem o que realmente é o ‘domínio do violino’ [“Violin Mastery”]. E o que é um mestre do violino? Ele deve ser um violinista, um pensador, um poeta, um ser humano; deve ter conhecido a esperança, o amor, a paixão e o desespero; deve ter percorrido toda a gama de emoções para expressá-las em sua performance. Ele deve tocar violino enquanto Pan toca sua flauta!”

Para concluir, Ysaÿe emitiu uma nota de advertência para o jovem estudante e violinista que é ambicioso demais. “Se a arte deve progredir, o elemento técnico e mecânico não deve, é claro, ser negligenciado. Mas um garoto de dezoito anos não pode esperar expressar aquilo que o estudante sério de trinta anos, o homem que realmente viveu, pode dar voz. Se a arte do violinista é realmente uma grande arte, ela não pode se concretizar na adolescência do artista. Sua realização não passa de uma promessa – uma promessa que encontra sua realização na e pela própria vida. No entanto, os americanos também têm tanto o cérebro quanto o talento espiritual necessário para entender e apreciar a beleza em alto grau. Eles podem apontar com orgulho para violinistas que merecem ser chamados de artistas e mais vinte e cinco anos de esforços artísticos pode muito bem colocá-los na linha de frente das realizações violinísticas!”

REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA

MARTENS, Frederick H. Eugène Ysaye: The Tools of Violin Mastery. In: _________. Violin Mastery: Talks with Master Violinists and Teachers. New York: Frederick A. Stokes Company, 1919.

________________________________________________________________________________________________________________

Abaixo, apresentamos dois vídeos. O primeiro é uma antiga gravação em que o próprio Ysaÿe toca o 3º movimento do Concerto em Mi Menor de Mendelssohn. A seguir, um vídeo do Concerto nº5 de Vieuxtemps, mencionado por Ysaÿe em sua entrevista: