Tradução do segundo capítulo do livro Violin Mastery (1919), de Frederick H. Martens, livremente adaptada para este formato por Bruna Caroline de Souza Berbert.
UM MÉTODO SEM SEGREDOS

Quando aquele célebre laboratório de criação de gênios musicais – o Conservatório de São Petersburgo – fechou suas portas por tempo indeterminado devido às instáveis condições políticas da Rússia, o famoso violinista e professor Leopold Auer decidiu fazer uma visita aos Estados Unidos, que tinha sido tão instigada por seus amigos e alunos. Sua fama, devido a arautos como Efrem Zimbalist, Mischa Elman, Kathleen Parlow, Eddy Brown, Francis MacMillan e, mais recentemente, Jascha Heifetz, Toscha Seidel e Max Rosen, há muito tempo o precedia; e a recepção que lhe foi dada neste país, como solista e como um dos maiores expoentes e professores de seu instrumento, foi à altura de sua autoridade e preeminência.

Não foi fácil conseguirmos uma conversa particular com o Mestre sobre sua arte, pois cada minuto de seu tempo era precioso. No entanto, finalmente em sua presença, o escritor descobriu que ele havia deixado de lado outras preocupações e respondia amigavelmente a todas as perguntas, uma vez que seu objetivo tinha sido revelado. Naturalmente, a primeira pergunta feita a um pedagogo tão célebre foi: “Como você forma artistas tão maravilhosos? Qual é o segredo do seu método?”

“Eu sei”, disse o professor Auer, “que há uma lenda de que eu faço algumas passagens mágicas com o arco a título de ilustração e – pronto! – você tem um Zimbalist ou um Heifetz! Mas a verdade é que eu não tenho método – a menos que você queira chamar linhas de desenvolvimento puramente naturais, baseadas em princípios naturais, de método – e, portanto, é claro que não há segredo sobre meus ensinamentos. O único ponto importante que enfatizo no ensino é nunca matar a individualidade dos meus vários alunos. Cada aluno tem suas próprias aptidões inatas, suas próprias qualidades pessoais em relação à sonoridade e à interpretação. Eu sempre fiz um estudo particularizado de cada aluno e ofereci um tratamento individual a cada um deles. E sempre – sempre! – incentivei-os a desenvolverem-se livremente à sua maneira, no que diz respeito à inspiração e aos ideais, desde que isso não fosse contrário aos princípios estéticos e aos da minha arte. A minha ideia sempre foi ajudar a trazer à tona o que a natureza fez, em vez de usar dogmas para forçar as tendências naturais de um aluno por caminhos que eu pessoalmente prefiro. E outro grande princípio em meu ensino, que produz resultados, é exigir o máximo possível do aluno. Assim, alguma coisa ele vai te trazer!

“É claro que eu observo toda essa questão do ensino de violino do ponto de vista do professor que tenta aperfeiçoar o que já está excelente do ponto de vista musical e artístico. Insisto em um aperfeiçoamento do desenvolvimento técnico com todos os meus alunos. A arte começa onde a técnica termina. Não existe desenvolvimento real da arte antes que a técnica seja firmemente estabelecida. E muito trabalho técnico deve ser feito antes que as grandes obras da literatura do violino – as sonatas e os concertos – sejam abordadas. Em São Petersburgo, meus assistentes (que estavam familiarizados com minhas ideias) preparavam meus alunos para mim. E, em minha própria experiência, descobri que não se pode ensinar somente com palavras, por explicações orais.  Se eu tenho uma consideração a fazer, eu a explico; mas se a minha explicação falhar, eu pego meu violino e arco e resolvo o assunto sem qualquer sombra de dúvida. A palavra é útil, é verdade, mas muitas vezes a palavra deve se materializar em ação para que seu significado seja claro. Existem sempre coisas que devem ser demonstradas literalmente para o aluno, embora a explicação deva sempre complementar a ilustração. Estudei com Joachim quando tinha dezesseis anos – antes de 1866, quando ainda existia um reinado em Hanover – e Joachim sempre ilustrava o que queria dizer com arco e violino. Mas ele nunca explicava o lado técnico do que ilustrava. Os alunos mais avançados compreendiam [suas intenções] sem comentários verbais; mas havia outros, no entanto, que não compreendiam.

“No que diz respeito à teoria de que se pode dizer quem é o professor de um violinista pela maneira como ele toca, eu não acredito nisso. Não acredito que você possa descobrir quem é um aluno de Auer pela maneira como ele toca. E eu tenho orgulho disso, pois mostra que meus alunos tiveram êxito a partir do meu incentivo quanto ao seu desenvolvimento individual e se tornaram artistas genuínos, cada um com uma personalidade própria, em vez de violinistas robotizados, todos com uma notável semelhança familiar”.

Questionado sobre como seus vários alunos refletiam diferentes fases de seus ideais/princípios pedagógicos, o professor Auer mencionou que desistiu, há muito tempo, de tirar conclusões definitivas sobre seus alunos. “Eu não poderia expressar tais opiniões sem comparações inconscientemente implícitas. E tão poucas comparações são realmente úteis! Então, a minha opinião é também apenas uma opinião pessoal. Portanto, como é meu costume há anos, continuarei a deixar qualquer parecer final sobre a performance de meus alunos para o público e para a imprensa”.

HORAS DE ESTUDO

“Por quanto tempo o aluno avançado deve estudar?” perguntamos ao professor Auer. “A forma correta de se estudar não é uma questão de horas”, respondeu ele. “O estudo deve representar o momento de maior concentração do cérebro. É melhor estudar com concentração durante duas horas do que praticar oito sem ela. Acredito que quatro horas é um bom tempo de estudo – nunca exijo mais de meus alunos – e que durante cada minuto, o cérebro deve manter-se tão ativo quanto os dedos”.

NACIONALIDADE vs. O SISTEMA CONSERVATORIAL

“Acho que há mais valor na ideia de um conservatório nacional do que na ideia de nacionalidade no que se refere ao violino. Não importa qual seja o local de nascimento do violinista, há apenas uma maneira pela qual um estudante pode se tornar um artista – e isso é tendo um professor hábil para ensinar! Na Europa, os melhores professores encontram-se nos grandes conservatórios nacionais. Thibaud, Ysaÿe – artistas do mais alto nível – são produtos do sistema conservatorial, com seus esplêndidos professores. E é assim também no caso de Kreisler, um dos grandes artistas que estudaram em Viena e Paris. Eddy Brown, o brilhante violinista americano, concluiu o Conservatório de Budapeste. No Conservatório de Paris, o número de alunos de uma turma é estritamente limitado e, desses alunos, cada professor escolhe o melhor (que pode não ter condições de pagar pelo curso), para lhe dar instrução gratuita. No Conservatório de São Petersburgo, onde Wieniawski me precedeu, havia centenas de bolsas de estudo gratuitas disponíveis. Se um grande talento aparecesse, ele sempre tinha oportunidade. Aceitamos e ensinamos os menos talentosos no Conservatório a fim de poder dar bolsas de estudo para aqueles que as mereciam e que não tinham condições de arcar com o curso. Assim, nenhum verdadeiro gênio violinista, a quem a pobreza poderia ter impedido de realizar seus sonhos, foi privado de sua chance na vida. Entre os alunos da minha turma com bolsas de estudo, estavam Kathleen Parlow, Elman, Zimbalist, Heifetz e Seidel.

VIOLIN MASTERY

“Domínio do violino (violin mastery)? Para mim, representa a soma total de realizações por parte daqueles que vivem na história da Arte. Todos aqueles que morreram há muito tempo, mas cuja memória de suas obras e criações ainda vivem, são os verdadeiros mestres do violino, e sua maestria é o registro de suas realizações. Quando criança, lembro-me de que os compositores mais conhecidos da época eram Marschner, Hiller, Nicolai e outros – ainda assim, a maior parte do que eles escreveram foi esquecida. Por outro lado, existem Tartini, Nardini, Paganini, Kreutzer, Dont e Rode – eles ainda vivem; e Ernst, Sarasate, Vieuxtemps e Wieniawski. Joachim (aliás, o único grande violinista alemão que eu conheço – e ele era húngaro!), embora tivesse poucos bons alunos e composto pouco, sempre será lembrado porque, juntamente com David, abriu um caminho mais nobre para o virtuosismo do violino e introduziu um ideal mais alto na música tocada pelo instrumento. São homens como esses que sempre serão lembrados como “mestres do violino”, assim como o ‘domínio de violino’ (violin mastery) pode ser definido pelo que eles fizeram”.

AS SONATAS PARA VIOLINO DE J. S. BACH E OUTRAS COMPOSIÇÕES

Respondendo a uma pergunta sobre o valor das sonatas para violino de Bach, o professor Auer afirmou: “Meus alunos sempre tocam Bach. Publiquei minha própria revisão delas por uma editora de Nova York. O que há de mais impressionante nessas sonatas para violino de Bach é que elas não precisam de acompanhamento: ele seria supérfluo. Bach compunha de maneira tão rápida e com tanta facilidade, que não seria difícil para ele escrever [um acompanhamento], se ele julgasse necessário. Mas ele não o fez, e estava certo. E elas ainda devem ser tocadas como ele as escreveu. Temos a orquestra ‘moderna’, o piano ‘moderno’, mas, graças a Deus, não há violino ‘moderno’! As indicações que eu fiz na minha edição no que diz respeito a arcadas, dedilhados, nuances de expressão, estão mais ou menos de acordo com o espírito da época, mas nenhuma nota que Bach escreveu foi alterada. As sonatas estão tecnicamente entre as coisas mais difíceis escritas para o violino, exceto por Ernst e Paganini. Não que elas sejam difíceis no sentido moderno: Bach não sabia nada sobre harmônicos, pizzicati, escalas em oitavas e décimas. Mas seu contraponto, suas fugas – interpretá-las bem quando o tema principal está, às vezes, nas vozes externas, às vezes, nas vozes internas, ou passando de uma para a outra – é extremamente difícil! Nas últimas sonatas, há um número maior de pequenos movimentos – mas isso não as torna mais fáceis de tocar.

“Eu também editei as sonatas de Beethoven junto com Rudolph Ganz. Ele trabalhou nas partes de piano em Nova York, enquanto eu estudava e revisava as partes de violino em São Petersburgo e na Noruega, onde eu passava meus verões durante a guerra. Não havia muita coisa pra fazer” – disse o professor Auer modestamente – “um pouco de dedilhados, algumas indicações de arcadas e não muito mais que isso. Nenhum revisor precisa colocar qualquer indicação de nuance e timbre em Beethoven. Ele era capaz de cuidar de tudo isso sozinho. Nenhum outro compositor demonstra tanto refinamento de nuances. Você precisa apenas examinar seus quartetos ou essas sonatas para se convencer disso. Nas minhas revisões de Brahms, forneço dedilhados, arcadas e outras indicações que são realmente necessárias! Composições importantes em que estou trabalhando atualmente incluem o belo Concerto de Ernst, Op. 23, os concertos para violino de Mozart e o Trille du diable de Tartini, com uma cadência especial para meu aluno Toscha Seidel.

EM RELAÇÃO A “PRODÍGIOS”

“Prodígios?” disse o professor Auer. “A palavra ‘prodígio’, quando aplicada a algum artista jovem, é sempre usada com um sentido de reprovação. O público e os críticos tendem a considerá-los com desconfiança. Por quê? Afinal, o importante não é a juventude, mas a arte. Examine a história da música – você descobrirá que muitos dos grandes mestres, ilustres na maturidade de sua genialidade, também foram excepcionais em sua infância. Há Mozart, Beethoven, Liszt, Rubinstein, d’Albert, Hofmann, Scriabine, Wieniawski – todos eles eram ‘crianças prodígios’, e certamente não em sentido censurável. Não estou querendo dizer que todo prodígio necessariamente se torna um grande mestre. Isso nem sempre acontece. Mas acredito que um prodígio musical, em vez de ser considerado com suspeita, tem o direito de ser encarado como um exemplo impressionante de uma elevada predisposição natural para a arte musical. É claro que o desenvolvimento mental completo do poder artístico vem como resultado dos processos de amadurecimento da própria vida. Mas eu acredito firmemente que todo prodígio representa um fenômeno musical valioso, que merece o maior interesse e encorajamento. Não me parece correto que, quando a arte de uma criança prodígio for incontestavelmente formidável, o simples fato de sua juventude sirva de desculpa para encará-la com preconceito e até com certo grau de desconfiança.”

REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA

MARTENS, Frederick H. Leopold Auer: A Method Without Secrets. In: _________. Violin Mastery: Talks with Master Violinists and Teachers. New York: Frederick A. Stokes Company, 1919.

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Abaixo, a título de curiosidade, apresentamos uma gravação de 1920, em que Leopold Auer toca o terceiro movimento da obra “Souvenir d’un lieu cher” de Tchaikovsky-Wilhelmj.

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