Você sabia que Marcos Raggio Salles (1885-1965) – violinista, compositor e professor do Conservatório Brasileiro de Música – foi o primeiro brasileiro a escrever um conjunto obras para o violino desacompanhado de que se tem registro? Neste artigo, apresentamos um pouco mais sobre a vida e obra desse pioneiro que buscava elevar a produção musical violinística brasileira aos níveis de virtuosismo e arte das obras de violinistas-compositores europeus.

PRIMEIROS ESTUDOS MUSICAIS

Marcos Salles nasceu em Salvador – BA, mas viveu a maior parte de sua infância e juventude em Belém – PA, onde iniciou seus estudos de violino de forma curiosa. O jovem Marcos Salles não era um estudante aplicado no colégio e, segundo seu próprio pai, Mecenas Salles, o garoto não ia bem ao piano, instrumento que lhe era ensinado por sua mãe, a pianista Maria Carolina Raggio Cruz. Aos 12 anos, Salles se interessou pelo violino e pediu permissão ao pai para estudar o instrumento. E pasmem: a autorização lhe foi negada, sob o pretexto de que de que, se tocando um instrumento mais fácil — o piano — Marcos Salles não ia bem, quanto mais estudando violino… As palavras de Mecenas, no entanto, não desanimaram Marcos Salles, que foi à sua mãe com o mesmo pedido e ela prontamente o atendeu, dando ao filho uma quantia em dinheiro para que comprasse seu primeiro violino.

No colégio onde estudava, Marcos Salles teve suas primeiras aulas do instrumento com o professor Ugo Pacciani, italiano, que logo voltou ao seu país natal e foi substituído pelo violinista português de sobrenome Maia, com quem continuou os estudos. Houve então um concurso entre os alunos de música do colégio, com premiações para os três primeiros lugares. Interessado, Marcos Salles (com apenas dois meses de estudo de violino) pediu ao professor Maia para participar da competição que, admirado após ouvir o menino tocar as músicas aprendidas com a mãe, permitiu a participação do aluno. Como o repertório executado por Salles era do mesmo nível de alunos mais avançados, a banca do concurso, surpreendida, procurou seu pai, a fim de averiguar a veracidade dos poucos três meses de aula. Mais surpreso ainda ficou Mecenas Salles, que não sabia sequer que o filho estudava violino e, após ouvi-lo, emocionou-se com o fato e incentivou-o em seus estudos musicais. Como resultado do talento demonstrado, foi concedida ao jovem violinista a medalha de ouro, que, segundo o próprio, ele nunca recebeu.

Por volta de 1900, Marcos Salles ingressou no Conservatório Carlos Gomes e passou a estudar com o violinista italiano Luigi Sarti (1861-1912). Após algum tempo, Sarti recomendou que Salles desse continuidade ao seu aperfeiçoamento na Itália, o que não só enriqueceria seu conhecimento técnico-violinístico como lhe daria o status necessário aos músicos da época [1]. Em 1907, aos 22 anos de idade, Marcos Salles se apresentou em público pela primeira vez, solando no Teatro da Paz frente à orquestra do Instituto Carlos Gomes duas peças: o Bolero de Filiputi e a Rapsódia Húngara de Miska Hauser. Este concerto também foi sua despedida do Brasil, tendo viajado para Itália um mês depois do evento.

ESTUDOS NO EXTERIOR E RETORNO AO BRASIL

Em Bolonha, Marcos Salles deu prosseguimento aos estudos de violino com Frederico Sarti, irmão de seu ex-professor no Conservatório Carlos Gomes, que o preparou para o ingresso na Real Academia Filarmônica, onde teve aulas de harmonia e composição com Guilherme Ricci e teve como colega o compositor Ottorino Respighi (1879-1936). Dois anos depois, em 1909, obteve o diploma de violinista, porém, no mesmo ano, Marcos Salles recebeu a notícia da morte de seu pai, abandonou os planos de continuar se aperfeiçoando na Europa e retornou ao Brasil.

De volta à sua terra natal, Salles teve uma ativa carreira musical, tocando em diversas cidades, como Salvador – BA, Belém – PA, Manaus – AM, Vitória – ES e Rio de Janeiro – RJ. Em muitos de seus recitais incluía, além do repertório canônico do violino, peças de sua autoria, por vezes aclamadas pela crítica especializada.

ATUAÇÃO COMO PROFESSOR

Em 1936, juntamente com Oscar Lorenzo Fernandez (1897-1948), Salles colaborou com a criação do Conservatório Brasileiro de Música, onde atuou como professor de violino. Neste mesmo período, o violinista lecionou canto nos estabelecimentos oficiais ligados à campanha cívica pelo programa de canto orfeônico de Heitor Villa-Lobos (1887-1959). Simultaneamente, porém, Salles iniciou a aplicação de seu próprio método de ensino, denominado posteriormente como Manu Pauta. Este sistema de musicalização começou a ser formulado por volta de 10 anos antes quando Marcos Salles atuava como professor no Liceu de Artes e Ofícios no Rio de Janeiro, instituição voltada, em geral, para o ensino de trabalhadores de baixa renda, de ambos os sexos. Os alunos do Liceu não tinham grandes pretensões, além de muitos serem analfabetos ou possuírem baixo índice de alfabetização. Neste contexto, Marcos Salles visou contornar estas questões de leitura e escrita com:

[…] recursos visuais, utilizando, para isso, as próprias mãos, as mãos do regente, as mãos com os prolongamentos dos dedos que imaginariamente formariam uma pauta perfeita, com 5 linhas e 4 espaços. Nasceu assim a Manu Pauta […]. Pouco a pouco, Marcos Salles foi sistematizando a sua técnica de ensino. E obteve tais resultados que conseguia, com facilidade, fazer os alunos cantarem a 3 ou 4 vozes bem ajustadas (SALLES; SALLES, 2010, p. 93).

O grande progresso no processo de ensino-aprendizagem dos alunos de Marcos Salles chamou a atenção do Liceu e ultrapassou os limites a instituição, chegando ao conhecimento de Frei Pedro Sinzig (1876-1952) que, entusiasmado, publicou um artigo no Jornal do Brasil, onde afirmava:

[…] o processo mágico, novo, do professor Marcos Salles que, no ensino da teoria musical e do solfejo, numa única lição, fazia os alunos progredirem mais do que, antes, em meia dúzia de aulas; que numa semana registrava resultados maiores do que, anteriormente, em meses (SINZIG apud SALLES; SALLES, 2010, p. 94).

A empolgação de Frei Pedro Sinzig foi tanta que ele decidiu publicar o método, arcando com todas as despesas envolvidas. Entretanto, o método não frutificou como esperava o clérigo e:

[…] embora vitoriosa como experiência, a “manu-pauta”, criação de Marcos Salles, não ultrapassou as salas de aula do Liceu de Artes e Ofícios (SALLES; SALLES, 2010, p. 98).

COMPOSIÇÕES PARA VIOLINO

Para além de sua carreira como instrumentista e professor, Marcos Salles dedicou-se à composição, primariamente, para violino. Segundo Marena e Vicente Salles [1]:

Fora desse rigorismo, a que submetia o instrumento, na fase inicial de sua produção, tentou nos últimos tempos criar peças para orquestra, fazendo instrumentação de algumas obras, elaborando quarteto e outras combinações instrumentais. O material resultante é precário. Faltou-lhe experiência e estudos mais acurados (SALLES; SALLES, 2010, p. 105).

Entretanto, seu grande foco foi realmente o violino, compondo desde músicas com interesse didático, exercícios técnicos, estudos e obras de exigência técnica bastante avançada.

Em especial, dedicou largos estudos à técnica do arco. Reuniu vários estudos de técnica e velocidade num álbum que denominou Dinamite, deixando outros estudos preparatórios e progressivos, desde os mais elementares aos mais adiantados (SALLES; SALLES, 2010, p. 105 e 106).

Além dos métodos para técnica de arco, harmônicos e exercícios elementares, Marcos Salles também escreveu uma série de conselhos para violinistas, registrando sua crença entre a influência da técnica do violão ao se tocar violino, sobre cuidados com o som, memorização e como se estudar, advertências sobre maus hábitos e ainda comentários sobre grandes violinistas de seu tempo.

Para Marena e Vicente Salles, a produção musical de Marcos Salles contém um nacionalismo moderado, espontâneo e sincero, tendo inclusive introduzido na sua música:

[…] elementos do populário e chegou mesmo a utilizar, com frequência, temas folclóricos, o imaginário amazônico de sua vivência no Pará, na primeira fase da vida, o que empresta a essas composições a identidade das raízes nacionais. A presença da Amazônia é constante na sua obra, pois seu espírito se deteve muita vez diante dos panoramas que lhe encantaram a infância e juventude, vividas em Belém, traduzindo essas impressões em motivos que nos fazem recordar, muito claramente, aspectos típicos da região, como as tardes chuvosas, as cantigas da gente de rua, as crendices, os mitos e as lendas (SALLES; SALLES, 2010, p. 106).

Marcos Salles acreditava na autonomia do violino e, para ele, Nicolò Paganini havia alcançado o desenvolvimento virtuosístico presente em sua obra para violino solo através do violão. Com este objetivo, Salles dedilhava e investigava as potencialidades técnicas e harmônicas do violão a fim de transportá-las para o violino desacompanhado [1]. Nesta vertente, compôs 26 peças para violino solo, inclusive, sete caprichos completos. Além destes, há registros de outros três caprichos, que não foram concluídos.

Durante seu período de estudos em Bolonha, na Itália, Marcos Salles compôs os Caprichos para violino solo, contendo, inicialmente, seis peças, sendo estas, inclusive, as primeiras obras para violino solo na história da música brasileira de que se tem registro. Fiel à mística de Paganini, seus caprichos possuem um predomínio de acordes, muitas oitavas e sextas duplas, além de forte caráter instrumental e uma grande variedade de golpes de arco [2].

É necessário mencionar aqui que os Caprichos para violino solo representam o início da atividade composicional de Marcos Salles, sendo os primeiros resultados de suas experiências na criação musical e, apesar de demonstrar consciência e domínio violinísticos, estas peças não contém todas as características de sua escrita como em obras mais tardias. É notável, ainda, que Marcos Salles, tendo como vocação não somente a performance, mas também seu trabalho como professor de música e de violino, imprimiu em seus Caprichos estas facetas que podem ser observadas no foco dado às oitavas dedilhadas e em bloco, ao staccato e ao tremolo de mão esquerda – 3º, 4º e 6º caprichos, respectivamente – estratégias similares aos Estudos tradicionais do instrumento, que abordam de forma profunda um aspecto técnico tendo como finalidade pedagógica seu exercício e aperfeiçoamento.

MARCOS SALLES NOS DIAS ATUAIS

Apesar da relevância histórica para o violino brasileiro, a figura de Marcos Salles continua pouco conhecida entre os violinistas. A primeira audição integral de seus Caprichos para violino solo ocorreu somente no ano de 2015, mais de 100 anos após sua criação. Ressaltamos aqui, ainda, os esforços de Marena e Vicente Salles [1] para a preservação e divulgação da história e música de Marcos Salles através do livro Marcos Salles: uma vida.

Por fim, clique aqui para acessar a playlist do YouTube com a minha gravação dos 7 caprichos de Marcos Salles.


Texto extraído e adaptado da tese de doutorado intitulada “Marcos Salles, Flausino Vale e Nicolò Paganini: análise comparativa entre caprichos e prelúdios para violino solo”, de autoria de Álisson Carvalho Berbert (UNIRIO, 2020).

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
  1. SALLES, Marena Isdebski; SALLES, Vicente. Marcos Salles: uma vida. Brasília: Thesaurus, 2010.
  2. PAULINYI, Zoltan. A afirmação do violino solo no Brasil com o álbum de seis caprichos de Marcos Salles. In: CONGRESSO DA ANPPOM, 20., 2010a, Florianópolis. Anais… Florianópolis: Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Música, 2010. p. 1097-1102. Disponível em: Anais do XX Congresso da ANPPOM.